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domingo, 24 de agosto de 2008

uma visão do futuro: 2097

Hoje, na véspera de meus cento e onze anos vejo que o mundo não é mais o mesmo que conheci no final do século XX. Aos vinte anos, eu tinha tanto medo de ser rejeitada pela sociedade com relação ao que pensava e escrevia e acreditava que acabei desistindo e escondendo as poucas linhas que surgiram. Hoje, vejo que aquilo era uma grande bobagem, já que toda a sociedade que eu temia já se foi e apenas eu fiquei esperando alguém que quisesse ler-me.
Ano passado perdi um bisneto, coisa que eu nunca imaginaria acontecer comigo nos meus vinte anos, quando eu nem imaginava ter bisnetos.
Amanhã alguém irá telefonar para entrevistas, perguntar o que faço para viver tanto e, mais uma vez, como venho respondendo nos últimos vinte anos, responderei que a escolha não foi minha, mas de algum anjo que quis que eu ficasse aqui um pouco mais. Sei que todos os meus antepassados me esperam em algum lugar do infinito.
Completei ontem cinqüenta e dois anos sem ligar uma televisão. No aniversário de cinco anos de minha primeira tataraneta lhe dei de presente um livro, que talvez ela nunca leia, mais que obriguei meus filhos a ler. Dói muito ver seus filhos atravessarem a Grande Porta, e todas as outras pessoas que você quer bem e mal, e você ficar esperando que num dia ou numa noite qualquer, Ela lhe entregue o passaporte que espero há mais de trinta anos, desde que a Terceira Guerra Mundial acabou e os Estados Unidos se entregaram a uma civilização que todos julgavam acabada há séculos.
Há três anos o então presidente do Brasil me entregou uma medalha de honra ao mérito por ser a pessoa mais “velha” a continuar votando. E eu perguntei a ele na frente de toda a imprensa: “Você me entregará esta medalha mesmo sabendo que eu não votei em você e nunca votei no seu partido?” Por um instante julguei seus olhos marejados de lágrimas. Ele me respondeu que isso jamais importaria para ele e para o povo brasileiro, já que eu era um exemplo de cidadania. Deu-me um abraço forte. Serviu-me um chá verde que recusei e lhe pedi iogurte natural.
Desde então arrumei um pretexto para não votar, uma viagem, um aniversário, um livro novo...
Já li todos os livros que pude querer ler e ainda hoje os releio e me desfaço deles. Escuto as músicas da minha juventude na Internet, músicas de cem, noventa anos atrás, as quais eu ouvirei pelo resto de minha vida.
Todas as noites alguém de meu passado, senta comigo à janela para ver o luar ou a chuva ou o vento. Ontem uma antiga professora conversava sobre “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. Sonhei depois que a morte não vinha pela serpente, mas pela raposa que cativa-nos pouco a pouco.
Viajei muito durante minha vida, hoje não há nenhum lugar que eu ainda queira conhecer ou rever, há não ser museus e bibliotecas, nos quais penetro sem identificação ou permissão, porque todos já me conhecem e me deixam andar livremente por todas as alas, ou ainda, as raríssimas paisagens verdes a perder de vista, que existem mais em minha memória do que pelo mundo.
Ao contrário do que muitos pensam, não estou triste, às vezes fico ansiosa e me deito achando que estou morrendo, mas me canso disso e vou para o computador responder meus e-mails ou ler algum livro que já conheço de cor.
Não há mais espelho sem minha casa. Sei que Joice, minha assistente tem um pequenino que ela esconde dentro da bolsa para que eu não veja. Também não há televisores e a pobre Joice passa horas com os ouvidos no rádio, já que nossos gostos musicais não combinam.
Na minha casa existem paredes onde meus filhos, meus netos, bisnetos, minha pequena tataraneta (que tem o nome de minha tataravó) e o meu Grande Amor escreveram recados para mim, desenharam ou simplesmente riscaram alguma coisa. São muito raros e valem todo um Potosí, pelo menos pra mim.
Vou dormir às dez da noite e levanto às seis da manhã, bebo iogurte, como muitas frutas e muito peixe, apesar das frutas e dos peixes não terem o mesmo gosto de antes.
Sinto falta de uma única pessoa: o meu marido. Meu amigo, namorado, esposo, amante. Sinto falta do seu cheiro, seu jeito, sua companhia e do sorriso que manteve até a última noite, da qual ele não acordou mais. Sei que ele, meus filhos, meus amigos e amigas, meu pai e minha mãe, meus avós, tios e tias, irmãos e irmãs, primos e primas me esperam no topo da Grande Escada.
Cansei de pedir para ir.
Agora apenas espero. O desconhecido. A única viagem que ainda farei. Sozinha.